Pesadelo da casa própria: releitura abusiva sobre o FCVS tenta prejudicar mutuários

As instituições de crédito imobiliário de forma arbitrária e abusiva vêm impedindo os mutuários, que celebraram contrato de financiamento imobiliário antes do ano de 1990 e que possuem dois imóveis financiados no mesmo município, de utilizarem-se da cobertura proporcionada pelo Fundo de Compensação e Variação Salarial (FCVS). A justificativa apontada pelas instituições de crédito imobiliário em defesa de tal conduta reside no fato de que a mera declaração pelo mutuário no sentido de não dispor de dois imóveis financiados no mesmo município afastaria, por completo, a possibilidade de valerem-se da cobertura pelo referido fundo.

Ocorre, que não se vislumbra na Lei nº 4.380/64, que rege os contratos celebrados anteriormente a 05 de dezembro de 1990, qualquer disposição acerca da aplicação de sanção aos mutuários na hipótese de se verificar a existência de dois imóveis financiados no mesmo município, sendo vetado, pois, às instituições de crédito fazê-lo. O direito constitucional pátrio prestigia o princípio da legalidade como um de seus princípios fundamentais, segundo o qual ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em razão da lei, motivo pelo qual a prática adotada pelas referidas instituições apresenta-se flagrantemente ilegal e abusiva.

Neste mesmo diapasão, os Tribunais de Justiça do nosso país instados a manifestarem-se acerca dessa matéria vêm se pronunciando reiteradamente pela possibilidade de os mutuários que disponham de dois imóveis financiados no mesmo município utilizarem-se do mencionado fundo, obrigando, dessa forma, as instituições de crédito imobiliário a reconhecerem a quitação do financiamento, concedendo, assim, a baixa na hipoteca do imóvel.

Lamentavelmente, somente os mutuários que recorrem à Justiça têm se beneficiado do não pagamento do suposto saldo residual, sendo que a grande maioria, desconhecedora de seus direitos, vê-se obrigada a desembolsar vultuosas quantias para a quitação do débito, ou até mesmo refinanciar o suposto saldo devedor em razão da incisiva e arbitrária cobrança efetivada pelas instituições de crédito imobiliário. Não dá para precisar o número exato, mas há indícios de que dezenas de milhares de mutuários têm duplo financiamento com a cobertura pelo FCVS. Para aquelas que compraram um imóvel nas décadas de 70 ou 80, a idéia de viver sossegado pelo resto da vida está sendo ameaçada por inesperadas cobranças de saldos residuais quatro ou cinco vezes superiores ao valor de venda do imóvel.

Impõe-se que os mutuários que se encontram em situação de impasse junto às referidas instituições, devido às irregularidades por elas praticadas, e que se enquadrem na hipótese em tela, qual seja, que tenham celebrado contrato de financiamento imobiliário em período anterior a 05 de dezembro de 1990 e que possuam dois imóveis financiados no mesmo município, recorram ao Poder Judiciário para verem assegurados seus direitos a fim de obter a quitação do financiamento, bem como a baixa na hipoteca de seus imóveis.

Entendendo o funcionamento do FCVS

O Fundo de Compensação de Variações Salariais foi criado com o intuito de garantir o limite de prazo para a amortização das dívidas dos financiamentos habitacionais contraídas pelos mutuários do extinto Sistema Financeiro de Habitação (SFH). Esse Fundo evitaria o desequilíbrio entre as atualizações monetárias dos saldos devedores e o reajuste anual das prestações dos financiamentos habitacionais. Acontece que quando esse Fundo foi criado, não se imaginava que, a partir de 1985, o Brasil atravessaria períodos de elevada inflação e que o governo federal tivesse de intervir politicamente na fixação dos reajustes anuais das prestações da casa própria. O FCVS se originou por intermédio da Resolução N.º 25, de 16 de junho de 1967, do Conselho de Administração do extinto Banco Nacional da Habitação (BNH).

Atualmente, essas instituições de crédito imobiliário estão recusando a baixa na hipoteca, para os casos de duplo financiamento, citando o primeiro parágrafo, do artigo 9º, da Lei Nº 4380/64, mas ele era dirigido aos próprios agentes financeiros por conter proibição de ordem administrativa. Esse parágrafo veda a concessão de financiamento aquele que já seja proprietário, promissário comprador ou cessionário de imóvel residencial na mesma localidade. Isso visava impedir os agentes de conceder financiamento às pessoas que já possuíam outro imóvel. Ocorre que tal vedação é destinada aos agentes financeiros, que não poderiam outorgar financiamentos para pretendentes que estivessem nessa situação.

Era dado a esses agentes o controle quanto às condições dos pretendentes a mutuários e nessa cláusula não contém nenhuma sanção dirigida aos mutuários, mas apenas aos agentes financeiros. Se na época eles não efetivaram esse controle, não se pode agora a financeira valer-se de uma regra destinada exclusivamente a ela. Como o mutuário assinou o contrato que previa a cobertura do FCVS e pagou todas as prestações, ele tem direito a esse benefício. Nesse sentido, não cabe a discussão sobre a existência ou não de mais de um contrato de financiamento de imóvel com a cobertura do FCVS se comprovado que em cada um deles o mutuário tenha contribuído com o Fundo.

Em 1991, o Governo Federal criou o Cadastro Nacional dos Mutuários (Cadmut), mas o sistema só começou a funcionar de fato após 1999. Antes disso, os bancos na hora de assinar o contrato, se limitavam a analisar a capacidade de pagamento do interessado. Os mutuários conseguiam a liberação da hipoteca sem dificuldade porque não existia um cadastro que identificasse essas pessoas. À financeira cabia aceitar ou não a operação, devendo diligenciar junto ao cartório distribuidor do registro de imóveis da cidade. Até porque desde dezembro de 1979, com a Lei 6.748/79, cabe aos agentes do sistema analisar e solicitar quaisquer documentos que julgar necessários. A partir da criação do Cadmut teve início a queda de braço entre bancos e mutuários.

Anteriormente, ao preencherem a ficha sócio econômica para análise da concessão, os mutuários tomavam ciência de que eventualmente teriam de alienar os imóveis que já possuíam no prazo de 180 dias, a contar da data dessa concessão. É importante frisar que as instituições de crédito imobiliário não estipulavam no contrato uma conseqüência para o não cumprimento da obrigação. Dessa maneira, inúmeros mutuários optaram por não vender os imóveis que já possuíam, uma vez que não existia no contrato, nem na lei, nenhum dispositivo que lhes obrigassem a pagar qualquer resíduo ou qualquer penalidade.

Ou seja, existia uma obrigação de alienar os outros imóveis financiados, mas não existia a penalidade para o não cumprimento dessa imposição. Os magistrados têm entendido que essa disposição contida no contrato é meramente administrativa e, que, se a lei que rege o assunto não vislumbra nenhuma pena para essa prática, a instituição financeira não pode criá-la unilateralmente. Além disso, ela não deveria ter cobrado a contribuição mensal para esse fundo se não iria utilizá-lo. Quem seria beneficiado então? Se o banco recebeu a contribuição referente ao fundo pelos dois financiamentos, ele tem o dever de utilizá-lo para os dois. Seria um enriquecimento ilícito da instituição financeira não beneficiar o contribuinte. Mesmo que a lei proibisse, o banco aceitou a duplicidade, então o erro foi dele. O artigo 3º da Lei Nº 8.100/90 alterado pelo artigo 4º da Lei Nº 10.150/00, determina que os contratos serão quitados pelo FCVS, independentemente do número de contratos que o mutuário tenha assinado. Mas isso está estabelecido apenas para os contratos firmados até 5 de dezembro de 1990.

O ponto final

O mutuário precisa no término do prazo contratual protocolar o pedido de liberação da hipoteca, e se receber uma notificação do agente financeiro cobrando o saldo residual, deve procurar um advogado especialista em direito imobiliário para propor uma ação judicial. Deverá levar provas de que já quitou o débito e que lhe é cobrado o saldo devedor residual em razão do duplo financiamento. O ex-mutuário não deve assinar junto ao agente financeiro nenhum documento para não caracterizar confissão de dívida. Há grande chance de êxito nesse tipo de ação.

O tempo médio de uma ação judicial desse tipo é de um ano e meio a dois anos, podendo ser concedida pelo juiz uma liminar, no início do processo, que obrigaria o banco a proceder com a imediata baixa na hipoteca. Todos os mutuários que tiverem dois imóveis financiados no mesmo município e que celebraram contrato de financiamento antes da vigência da Lei 8.100/90 podem se utilizar do FCVS e devem exigir na justiça os seus direitos.

Para os contratos celebrados antes dessa data, é descabida a pretensão dos bancos de aplicar regras legais e administrativas surgidas posteriormente. Nesse artigo, tentamos apontar caminhos possíveis a fim de ajudar aos mutuários que passam por experiências semelhantes, mas as variáveis são diversas. Resta aos especialistas um trabalho de paciência para perceber a melhor saída frente ao caso concreto. A Constituição Federal de 1988 dispõe que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Portanto, fica claro e cristalino que a fundamentação dos bancos para a cobrança do saldo residual não encontra respaldo legal.